Travessias Capibaribe – Recife – PE

TRAVESSIAS CAPIBARIBE

RECIFE – Pe – 2022

PROPOSTA PARA O CONCURSO NACIONAL DE ARQUITETURA E URBANISMO PARA PASSARELAS SOBRE O RIO CAPIBARIBE EM RECIFE.

“Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.

Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.”

João Cabral de Melo Neto em “O Cão Sem Plumas” (trecho)

A história do Capibaribe é a história de Recife. Como principal rio da cidade, sua várzea sempre foi um eixo de ocupação e estruturação do crescimento urbano. Para entender sua importância no contexto de projeto é importante olhar além de sua história, destacando questões ambientais e culturais que permitem entender a relação entre as pessoas, o imaginário recifense e a paisagem fluvial.
Apesar de ser o principal rio da cidade, atualmente as margens do Capibaribe, especialmente na região objeto dessa proposta, carecem de vitalidade urbana. Um dos indicadores que permite entender a relação entre o rio e a estrutura urbana é justamente a baixa qualidade e escassez dos espaços públicos nas suas margens, constituídas, em geral, por fundos de lotes privados, propriedades governamentais sem uso público e assentamentos precários. Os trechos das áreas ribeirinhas, nos quais fica claro o contraste socioeconômico, são também os que apresentam menor número de conexões e travessias entre margens.

Geograficamente, os bairros da Torre, Jaqueira e Santana constituem uma espécie de território recortado pela curva acentuada que traça o Capibaribe na região. Essa espécie de “meandro”, assumido e estabilizado pela cidade, é então o local proposto para a intervenção. Dessa leitura inicial percebe-se que o recorte decorrente dessa curvatura fragmenta a malha urbana, mas, ao mesmo tempo, nos concede um elemento paisagístico único em que as visuais dos remanescentes de vegetação ciliar contrastam com os edifícios e os espaços públicos.

Ações de conectar e permitir a travessia são necessidades naturais, permitindo que as pessoas tenham novas possibilidades de percurso e, consequentemente, melhorando sua qualidade de vida urbana.
O entorno dos locais indicados para a implantação das duas novas travessias do Rio Capibaribe possui características singulares encaradas aqui não só como pré-existências, mas também assumidas como premissas de projeto.

Passarela para o Trecho 1 – Cabeceiras A e B.

A cabeceira A, inserida de forma qualificada no novo projeto para o Parque Capibaribe, tem, nessa porção, a conexão de espaços livres prevista com a Praça Compositor Antônio Maria e, por vizinhança, também com o Parque Santana. A Rua Nestor Silva, que faz lateral com a Praça, tem a paisagem marcada por uma alameda de palmeiras, o que reforça um dos sentidos possíveis de acesso a essa cabeceira. Um deque em madeira, perfurado pela arborização existente na borda e talude do rio, abre-se para receber os pedestres e ciclistas junto a esse local.

Na região da cabeceira B, temos o espaço livre de maior área disponibilizado para intervenção. O terreno delimitado entre o rio, os fundos do Supermercado Carrefour e a continuidade da Rua Marcos André, tem como forma residual aproximada um triângulo equilátero. A área é suficiente para o desenho de uma praça de pequena escala, com área de lazer infantil, espaços para estar, contemplação, encontro e também para instalação eventual de comércio ambulante. A intenção é desenhar o lugar como uma espécie de clareira, um espaço livre pouco existente nessa região da cabeceira B nesse lado do rio. Os caminhos desenhados de forma complementar ao projeto da pequena praça estabelecem conexões peatonais com as comunidades vizinhas, muitas delas carentes de espaços de lazer.
O acesso de veículos para carga e descarga do supermercado pode, futuramente, servir de expansão para os espaços livres da praça, incorporando novos equipamentos e atividades. Hoje, quando não há circulação de veículos e o espaço fica livre a maior parte do tempo, é possível pensar em uma área de lazer compartilhado.

A linha comum do traçado da Rua Marcos André e o início da passarela proposta formam naturalmente uma curva que se abre antes de atravessar transversalmente o rio. O usuário descobre aos poucos esse espaço que funciona como uma antessala urbana. Ali, diversos equipamentos estão desenhados para promover a qualidade da passagem e permitir a permanência.
Também a partir da praça é possível acessar um deque que conduz a um atracadouro posicionado paralelamente ao eixo navegável do Capibaribe.

Passarela para o Trecho 2 – Cabeceiras C e D.

Na área da cabeceira C as principais referências de espaços livres existentes são o Jardim do Baobá e o Parque da Jaqueira. Como o acesso à travessia é bastante estreito, ocorrendo lateralmente ao edifício do Conselho Estadual de Educação, sugere-se uma marcação junto ao piso da calçada da Av. Rui Barbosa, que indique com clareza a conexão entre a passarela e esse local da cidade. A passarela proposta adapta-se ao projeto do Parque Capibaribe, prolongando um deque que funciona como mirante para a várzea do rio.

Já a cabeceira B conecta o Bairro da Torre, marcante para a história fabril do Recife, no qual se localiza o Cotonifício da Torre e seu entorno operário. Na esquina entre a Av. Beira Rio e a Rua Marcos André, a passagem elevada de veículos proposta nos planos para a região é mantida, melhorando a qualidade de travessia para pedestres. Dessa esquina parte também um deque elevado, derivando em duas direções: a da passarela, que vai à lateral do Conselho Estadual de Educação, e a do atracadouro proposto, como uma previsão à implantação do plano de transporte aquaviário da região.

***

Nessa proposta, a aproximação ao problema de projeto ocorre na análise dos elementos urbanísticos presentes na realidade local. O caráter da intervenção é, então, construído a partir do olhar sobre o que já existe.
Imaginam-se espaços em que os percursos de pedestres e ciclistas sejam compartilhados, corretamente sinalizados e onde existam sempre locais de preparação para as travessias, desenhados com a escala adequada.

Da mesma forma, a estrutura das pontes é pensada numa escala singela, sem grandes gestos estruturais, buscando uma justa medida de desenho que adapte ao contexto da várzea do rio e da cidade. Optou-se por uma materialidade, para o sistema estrutural, em concreto pigmentado e aço com pintura de alta resistência à corrosão. A forma facetada da estrutura, além de refletir o diagrama de esforços estruturais, confere a identidade necessária aos objetos arquitetônicos.

Deu-se importância fundamental aos sistemas de montagem a partir da pré-fabricação, uma vez que o espaço de canteiro disponível é exíguo.
As praças de acesso são paginadas com pisos em concreto moldado no local, com modulação triangular. A partir dessa malha geométrica, de aspecto mineral, partem deques e pisos em madeira que compõem o piso das passarelas.

“Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra. — Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? — pergunta Kublai Khan. — A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra — responde Marco —, mas pela curva do arco que estas formam. Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta: — Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde: — Sem pedras o arco não existe.”
Ítalo Calvino em “As Cidades Invisíveis” (trecho)


Paisagismo

O projeto de paisagismo utilizou as informações e listagem de espécies do Plano Urbanístico de Recuperação Ambiental do Rio Capibaribe – PURA, respeitando as tipologias esmiuçadas no documento: Ambientes Interface, de uso, Borda, Talude e Mangue. As passarelas atravessam estas áreas, sendo imprescindível a correta marcação destas faixas antes da escolha da vegetação.
O plantio dos Ambientes Borda, Talude e Mangue devem seguir critérios técnicos como presença de água, proximidade do leito, relevo, dentre outros. Fora as espécies exóticas – que devem ser eliminadas – a premissa é derrubar apenas o estritamente necessário para a construção. Onde ocorrer dano, o detalhamento executivo deve ser pensado como um projeto de recuperação. Ali, devem ser implementadas comunidades de plantas, que servirão para garantir estabilidade do solo, filtragem da água, atração de avifauna, etc, propiciando o surgimento de nativas expontâneas, cujas sementes são trazidas pelo próprio rio e pela fauna local.

1 – Para os Ambientes Talude e Mangue, a vegetação precisa ser adaptada ao regime de cheias e à salinidade, habituais em áreas estuarinas.
Da listagem apresentada no PURA, para o Ambiente Mangue, podemos destacar as diversas espécies de mangue: Mangue-preto (Avicennia schaueriana), Mangue-vermelho (Rhizophora mangle), Mangue-branco (Laguncularia racemosa), Mangue-botão (Conocarpus erectus) e Mangue-da-mata (Tovomita brevistaminea).
Para o Ambiente Talude, é imprescindível a estabilidade do solo. Ali, devem ser plantadas comunidades de forrageiras, herbáceas e arbustos que se beneficiem do regime de cheias. Podem ser citadas: Maria-preta (Varronia multispicata), Guanhuma (Cordia superba), Capim-flexinha (Echinolaena inflexa), Gênero Psychotria e Coccoloba, dentre outras espécies.

2 – O Ambiente Borda deve ser um bosque denso e biodiverso, preferencialmente com espécies de pequeno ou médio porte, que marque os limites do Ambiente de uso. Deve configurar uma barreira visual e física ao talude. Algumas espécies possíveis: Suinã (Erythrina velutina), Jenipapeiro (Genipa americana), Capiúba (Tapirira guianensis), Bolebeira (Sapindus saponária), Ipês (Handroanthus spp) e tantas outras.

3 – O Ambiente Interface consiste na separação entre o Parque e a Cidade. Nele ocorre a Arborização das vias, passeios e tratamentos de empenas voltados para as áreas do Parque. Nestes espaços, o ideal é o plantio de espécies mais comumente encontradas em viveiros com tamanho mais apropriado ao meio-urbano, onde são mais expostas à vandalismos e traumas. Oitis (Licania tormentosa), Ipês (Handroanthus spp), Sapucaias (Lectythis spp), Bolebeira (Sapindus saponaria), Açoita-cavalo (Luehea spp) são exemplos de árvores adequadas e facilmente encontradas comercialmente.
praças ev acessos às Passarelas. Como partido, optou-se por destacar a área no contexto urbano por meio das cores e do porte das plantas.
Após análise da tabela de espécies sugeridas pelo PURA, notou-se a grande quantidade de espécies que apresentam algum elemento de tom ferruginoso ou avermelhado. Assim, a proposta priorizou árvores com essas características, criando um novo marco topoceptivo. A ideia é que durante quase todo o ano algum elemento esteja avermelhado, sejam eles flores, folhas, frutos ou galhos. A tabela abaixo lista as espécies escolhidas:
Em ambas as passarelas, as árvores dispostas nas áreas das praças e cabeceiras se destacarão na paisagem por seu porte grande, passando a altura do dossel do Ambiente Bosque. Pretende-se criar um marco visual para o acesso às passarelas, ajudando na orientação no meio urbano. Nos acessos a ambas as passarelas, foram dispostas Cássias-vermelhas, de porte muito grande e beleza cênica marcante.

No Trecho 1, Cabeceira A e Trecho 2, ambas as cabecerias, parte do Bosque denso existente na entrada deve ser liberado, explicitando o acesso e emoldurando a vista para o Rio Capibaribe. O acesso se dará por um deque, que será furado para dar passagem à copa das árvores.

O Trecho 1, Cabeceira 2, é o espaço com mais possibilidades de design. Entre deque e piso da praça há uma aglomeração de suinãs (Erythrina velutina) e jenipapos (Genipa americana), árvores de formas interessantes e floração intensa, no caso do suinã. Emoldurando o piso central, diversas espécies para sombreamento e fechamento visual formam planos, fazendo a praça voltar-se para si. Aroeiras (Myracrodruon unundureuva), cajueiros (Anacardium occidentale), cássias-vermelhas (Cassia grandis), mandiocões (Schefflera morototoni), favas-de-bolota (Parkia pendula) e tucaneiros (Citharexylum myrianthum) estão dispostos de forma compositiva.

Solução Estrutural

O arranjo estrutural para vencer os vãos entre apoios nas passarelas sobre o Rio Capibaribe é simples: vigas de seção caixão de concreto armado moldadas “in loco” – junto aos pilares e nas margens do rio – associadas a vigas de seção caixão de aço (com dupla proteção às intempéries: alta resistência à corrosão e pintura) sobre o rio; porém, há um refinamento de desenho que traz eficiência estrutural: as seções têm altura variável, com mais inércia nos pontos onde o momento fletor é mais intenso, conforme pode ser visto na Figura 01. Essa transparência da variação do esforço principal ao longo da extensão, além de trazer economia, é parte plástica importante da proposta arquitetônica.

As seções caixão de concreto armado têm viga longarina central de altura variável – na linha dos pontos de apoio – e transversinas que, associadas às lajes (de fundo, tabuleiro e laterais) dão rigidez necessária, atendendo aos limites de deformação e resistência, com menor consumo de material.

As seções caixão de aço têm proposta compositiva similar: uma viga longarina central, na linha de pilares, será formada pela associação de dois perfis I soldados, de altura variável, que formarão um tubo retangular; na direção transversal surge, em planos paralelos, um sistema misto de pórtico (de perfis I laminados leves) com diagonal de treliça (que parte da mesa superior da viga central e suspende os dois pontos opostos inferiores da seção). O tabuleiro tem complemento por barras em diagonal, na planta, que formam treliça de contraventamento; esta, em conjunto com as demais peças lineares descritas e chapas estruturais de fechamento (superior, laterais e de fundo) formam tubo com alta resistência e rigidez – inclusive à torção, esforço que ocorrerá quando atuarem sobrecargas assimétricas sobre o tabuleiro.

O sistema híbrido proposto aproveita as características de cada material com inteligência: junto ao solo, pela maior durabilidade e facilidade de execução, e junto aos pilares, pela necessidade da formação de ligações monolíticas, o concreto armado é o material escolhido. Sobre o rio a construção se dá por montagem das peças pré-fabricadas em aço, com facilidade de serem produzidas composições modulares com dimensões dentro do limite de transporte em caminhões na cidade, além de ser mais leve para o transporte vertical. As ligações entre as estruturas de concreto armado e de aço são possíveis a partir de insertos conectados a chapas de ligações e parafusos – componentes galvanizados e pintados, com garantia de durabilidade para o enfrentamento das intempéries.

O PROJETO

A EQUIPE

Autores

Arq. Emerson Vidigal

Arq. Eron Costin

Arq. Fabio Faria

Arq. João Gabriel Cordeiro

Arq. Martin Goic

Colaboradores

Camila de Andrade

Charlles Furtado

Guilherme Fernando Pinto

Tamy Pesinato

Consultores

Paula Farage (Paisagismo e Meio ambiente)

Ricardo Henrique Dias (Estruturas)

Leonardo Vinhal (Fundações)

FICHA TÉCNICA

Travessias Capibaribe – Recife – PE – 2022

    • Concurso Nacional para proposta arquitetônica, urbanística e estrutural para duas Passarelas no Recife
    • Comprimento Travessia AB: 90 m
    • Comprimento Travessia CD: 102 m
    • Praça Cabeceira B: 4.000 m²

@ Estúdio41 Arquitetura. Design: 095
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